terça-feira, 24 de setembro de 2013

GAIA. A missão espacial com mais ADN português está prestes a descolar

Se tudo correr como o previsto, Agência Espacial Europeia terá o mapa mais detalhado de sempre da Via Láctea. Participação de cientistas portugueses esteve no limbo mas aguentou-se


(IOnline) Um euro por estrela. Dito assim parece uma brincadeira, mas a missão da Agência Espacial Europeia (ESA) foi considerada uma ideia impossível, demorou 20 anos a erguer-se e só agora está prestes a descolar, com o objectivo de conseguir um catálogo das estrelas da Via Láctea que seja 10 milhões de vezes mais completo do que o anterior, tirando medidas inéditas de mil milhões de estrelas, 1% das que se calcula que existam na galáxia. Chega-se ao preço que parece de saldo, porque apesar do objectivo, a missão completa, contando com dez anos de desenvolvimento tecnológico e os cinco que o satélite estará no Espaço, ronda os mil milhões de euros. Depois de alguns atrasos nos fabricantes, o satélite foi transportado este Verão para o local de lançamento na Guiana Francesa e está agora nos testes finais. Se tudo correr como previsto, segue para o Espaço a 20 de Novembro.

Para os cientistas é a realização de um sonho e o nascimento de uma "máquina de descobertas", como lhe chamou Alvaro Giménez, director de ciência e exploração robótica da agência espacial. Para Portugal é um recorde de participação, 13 anos depois da adesão à ESA. Três empresas nacionais contribuíram para sistemas centrais na missão e há 14 investigadores de cinco instituições directamente envolvidos no projecto. Mas há mais: Tiago Loureiro, engenheiro há nove anos nos quadros da ESA, é o vice-coordenador da equipa de controlo de voo da Gaia, baseada na Alemanha. No dia D, será uma das pessoas que terá de dar o OK para o lançamento do satélite, que demorará 20 dias a chegar à órbita a 1,5 milhões de quilómetros da Terra, de onde terá vista limpa e privilegiada para astros a muitos milhares de milhões de quilómetros, os mais próximos - tirando o Sol - a 40 biliões.

Em jeito de balanço, é verdade que o contexto do país mudou desde que começaram os trabalhos nacionais em torno da Gaia, mas as empresas cumpriram os pedidos na hora e acreditam que têm espaço para crescer se houver maior investimento nacional. Já a equipa científica envolvida, a primeira de sempre na relação entre Portugal e ESA, tem aguentado a liderança de dossiês, ainda com algumas dores de cabeça.

André Moitinho de Almeida, investigador da Universidade de Lisboa, é o coordenador da participação científica na missão e entre 2007 e 2011 foi mesmo consultor da ESA. Em 2003, quando começaram a ser pensadas as formas de processar os dados que nos próximos cinco anos da Gaia no Espaço irão chegar a Terra ao ritmo de 50 gigas por dia, candidatou-se, com uma equipa de mais de 20 investigadores de Lisboa, Porto e Coimbra, ao financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, que lhes permitiria integrar um consórcio que junta 350 investigadores europeus. Mantêm-se a trabalhar juntos desde então e, mais que dificuldades técnicas, o problema tem sido o financiamento.

A Gaia é um projecto científico da ESA, daqueles para os quais os Estados-Membros contribuem obrigatoriamente. No caso português, neste momento a renda à ESA ronda os 15 milhões de euros por ano. Mas para os investigadores darem resposta aos convites e oportunidades de trabalho, precisam de financiamento para equipamento e pessoal. Numa altura em que ainda existiam concursos nacionais para financiamento de programas dedicados ao Espaço - extintos em 2007 - conseguiram 264 mil euros. Hoje, olhando para trás, o período mais crítico foi 2010, quando tiveram quatro meses sem saber se a FCT aprovaria uma extensão do projecto. Conseguiram novas verbas de 120 mil euros e a partir de 2014 a situação será incerta. A equipa baixou de 20 elementos para 14, por terem completado algumas tarefas, mas também pela diminuição do financiamento, e os novos sinais de aperto causam alguma angústia ."Teoricamente, não havia razão para dificuldades para além dos desafios postos pela missão propriamente dita. O problema é que em contraste com os sinais positivos dados pela FCT, não há um planeamento ou programa adequados para projectos de longa duração e com equipas grandes", lamenta. O balanço científico, contudo, superou as expectativas. "Foi a primeira vez que participámos na concepção científica e implementação de uma missão aprovada da ESA e felizmente já não é a única. A missão EUCLID da ESA, que estudará distribuições de matéria e energia escura do universo, será lançada em 2020 e terá também uma importante participação nacional", diz o investigador.

Na Gaia, que vai permitir o mapa 3D mais detalhado de sempre da Via Láctea, são muitos os contributos portugueses. Desenvolveram algoritmos e sistemas de controlo de qualidade que vão ajudar a processar informação, desde a forma do cálculo da idade de estrelas com uma dimensão parecida com a do Sol, à interpretação dos movimentos de planetas fora do sistema solar e explosões de galáxias. Por outro lado, estão a trabalhar nas infra-estruturas que permitirão, dentro de uma década, apresentar os resultados à comunidade científica e ao público. "Os desafios colocados pela exploração visual interactiva de grandes quantidades de dados multidimensionais, como os que Gaia proporcionará, é um dos tópicos quentes do momento", diz o investigador de 46 anos, revelando que a equipa portuguesa assumiu a liderança deste dossiê, que pode dar frutos para o futuro além da astronomia. "Resolvê-los terá importância não só para a astronomia, mas para todas as áreas que trabalham com grandes quantidades de dados, da biologia à análise económica ou alterações climáticas." No final da missão, estima-se que o total de informação recolhida, e que permitirá fixar o brilho, composição e coordenadas exactas das estrelas, mas também refazer a história e sistema de distância da galáxia, some qualquer coisa como um milhão de gigabytes, o equivalente a 200 mil DVD. "Comparando com a biologia, posso aprender muito sobre organismos vendo-os a uma certa distância, mas só entendo realmente como funcionam se puder observar e analisar as suas células e a forma como se articulam. É isto que Gaia vai trazer para a compreensão da formação e evolução de galáxias ao observar em detalhe a Via Láctea."

Na excitação da missão estar já em plena campanha de lançamento, as tarefas multiplicam-se. Os dados deverão começar a chegar à Terra de forma rotineira em meados de Abril e espera-se que 22 meses após o lançamento esteja concluído o primeiro mapa das estrelas, ainda com poucas medições. O objectivo da ESA é que cada estrela venha a ser analisada 70 vezes pelos equipamentos a bordo do satélite até haver informação suficiente.

Uma das preocupações centrais será captar as chamadas paralaxes estelares, ou distâncias, sendo necessário combinar medições em diferentes períodos. Os cientistas conseguem medir a distância usando um movimento ilusório, semelhante ao que se obtém quando se observa um ponto com o olho direito e o esquerdo à vez.

Por agora, a equipa está a simular que recebe dados, para depois optimizar o tratamento de informação real. É uma tarefa parecida que tem ocupado Tiago Loureiro, depois de, em 2008, ter integrado o grupo de controlo de voo do Gaia, que acompanhou o desenvolvimento do satélite, guiará a fase crítica do lançamento e seguirá todos os trabalhos durante os cinco anos da missão. O engenheiro de 36 anos conta que até hoje já completaram mais de 40 dias de testes com a nave, desenvolvida na Alemanha e agora em Kourou, na Guiana Francesa. São mais de 500 horas de testes, em que avaliaram 500 mil comandos. Nas próximas semanas, vão estar nas salas de controlo a ser confrontados com potenciais falhas e a perceber o que poderão fazer para lhes dar a volta. O stress é uma constante, mas o planeamento e as simulações diminuem os receios, explica. "Nunca aconteceu nada porque alguém fez asneira. Defendemo-nos fazendo antecipadamente tudo o que está ao nosso alcance. Nesse aspecto, é mais seguro que um avião. Além disso, a nave tem sistemas redundantes. Pode falhar um computador ou um sistema de propulsão, ou muitas vezes duas destas coisas ao mesmo tempo, que não há problema."

O satélite vai ser enviado para o Espaço no foguetão privado Soyuz e só deverá chegar à órbita 20 dias depois. "Só quando for largado a algumas centenas de milhares de quilómetros da Terra é que assumimos de novo os comandos e fazemos a manobra de transferência para a órbita final", diz Loureiro. E só passado um mês é que poderão calibrar o equipamento para começar o trabalho científico, dado que é preciso deixar a nave arrefecer sem o risco de danificar, por exemplo, os 106 sensores de captação de imagens que formarão uma matriz de quase mil milhões de píxeis e fazem do plano focal do telescópio Gaia o maior enviado para o Espaço. Representam algo como mil máquinas fotográficas num espaço de 0,38 metros quadrados.

Por tudo isto, um euro por estrela acaba por ser um valor irrisório. "O Gaia vai manter a Europa na liderança da astronomia e astrometria", disse ao i Giuseppe Sarri, gestor de projecto da missão, que não poupa elogios à participação portuguesa. "Portugal tem mantido o seu compromisso na ESA. No caso das empresas, estamos muito contentes com a qualidade final."

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